Um sorriso para caminhar, mesmo com o cansaço da longa jornada. O que diz o vento? Não se ouve — é somente silêncio, promessa do que ainda virá. As dores ainda são sentidas, os olhares ainda se enchem de lágrimas. Uma tênue passagem de pensamento, solto, fugiu sem ser pensado. O admirável e a sutileza das manhãs: um verso de uma poesia desconhecida, como aqueles que Fernando Pessoa dizia nascerem do nada, mas que carregam o tudo.
Nas margens da imaginação, o voo rasante de um sonho distante. Apenas um horizonte contempla as planícies verdejantes que fazem fronteira entre o tudo e o todo. O tempo alimenta instantes e bebe a sede na próxima esquina, repousando à beira do rio da existência, como quem escuta Camus e entende que, apesar do absurdo, a pedra precisa ser empurrada outra vez.
As pálpebras ainda dormiam o sono dos justos. O jardim, a festa, os vívidos momentos de uma alegria passageira, felicidades artificiais — líquidas, diria Bauman, dissolvidas antes de se tornarem raízes. Planícies, montanhas e nuvens escondiam o sol, como se quisessem prolongar os dias. Sob a luz do luar e o brilho das estrelas liam-se frases, restos de versos e a odisseia que atravessava os tempos, aglutinando-se no todo que logo se desfazia, como em um pergaminho esquecido de Eclesiastes: vaidade de vaidades, tudo é vaidade.
A noite ancora seus barcos em mares petrificados, naufragados nas angústias que campeiam as emoções, embriagadas por extasiantes momentos e Jardins abandonados guardam olhares que esqueceram as lágrimas. Mesmo em noites passageiras alimentam-se sonhos e pesadelos, nos caminhos que levam ao outro lado dessas paralelas flutuantes, como no filme em que Bergman fez um cavaleiro jogar xadrez com a Morte.
Segue o brilho de uma noite escura. Seguem passos tortos, entre curvas e retas das misérias humanas. Segue o ritmo do tempo e das ilusões disfarçadas, consumindo-se sob a vitrine do caos. Ao longo do caminho, abraça-se o inimigo e seguem-se os rastros das inglórias existenciais. A cura do mal e o alívio das dores chegam com o amanhecer. Os restos alimentam a fome de um novo dia.
As leis, as doutrinas, a domesticação das ovelhas nos campos das tiranias. O trono vazio, o rei nu, a plebe doutrinada. Nietzsche sorri de lado: o último homem venceu, e já não sonha. Mas o azul ainda é azul, e a terra ainda germina a semente. O triunfo dos caídos, a lei dos abandonados sobre o asfalto quente da insensatez. A democracia fragilizada, a bandeira da mediocridade nutrindo a banalidade e a imbecilidade dos nossos tempos — como na voz de Belchior, quando dizia que o passado é uma roupa que não nos serve mais.
Os livros, as árvores, suas folhas e frutos nas páginas da imaginação. No alto da montanha, a sede da poesia: versos que bebem alturas. O tempo se esvai entre dedos e mãos que fecham as portas do quarto vazio. Clarice poderia dizer: “escrevo como quem aprende”, e talvez aprender seja isso — segurar o silêncio com as mãos.
Frases escritas nas paredes da memória. Versos caminhando em busca de poesia. Águas bebendo o rio da existência. Encontros desencontrados onde horizontes se trançam sob pena do olhar que observa suas próprias dimensões.
As janelas das casas trancadas em ares embolorados, micróbios flutuantes que bebem do caos e se nutrem de perversidades. Pelas portas entreabertas fogem pensamentos com medo de fantasmas que gritam quase inaudíveis. Entre tantos, entretanto, sente-se a dor do tempo enredado no coração da imaginação — que, mesmo assim, insiste em criar um novo mundo. Como no Getsêmani, onde a dor e a esperança compartilharam o mesmo jardim.
Nos diários, anotações do que parecia necessário ou importante no momento. Mas nada se sabia. Talvez nada fosse. As visões vinham e iam conforme as preocupações. As páginas em branco também faziam parte — e eram lidas em silêncio, para compreender o silêncio das palavras que enchiam longas páginas vazias.
E assim seguia o caminho. E assim se chegava mais longe, recitando os versos de uma poesia distante. Que sejam todos os momentos assim, mesmo esquecendo o que já passou. Mente, coração, pensamento e sentimento compõem os delírios de uma noite escura.
Agora, não sei. A imaginação partiu, e fantasmas invadiram o castelo, roubando o ouro roubado dos tolos de plantão. A lua recusa-se a clarear, e as estrelas escondem seu brilho.
Por favor, acorde. O sol já brilhou tantas vezes, mesmo sobre sonhos nunca sonhados. Tudo bem, segue em frente. Apenas segue ao encontro do que ainda há de se encontrar — antes que chegue à noite. Ainda o sonho. Ainda o caminho. Ainda o caminhar, até chegar ao próximo jardim, onde se semeia a esperança: a semente do amanhã.
Luiz Carlos de Proença – Autor do livro: O sol nas margens da noite e A pele do vento