Publicado desde 1969
Fundado por José Carlos Tallarico

Nos jardins das cicatrizes

A partir de agora, são todos e mais ninguém. A partir do tempo que marca alguns momentos que parecem especiais. São sentimentos que semeiam algo acima de qualquer peso, mais leve até que as nuvens. Para além dos limites, o espaço sideral e os horizontes ao alcance dos olhares em infinitos diversos. Ao alcance das mãos, um punhado de esperança entre os sonhos que habitam céus e terras.

Meus pensamentos mapeiam meus momentos como o vento que varre folhas secas desprezadas pelo tempo. Lá no alto, no ápice da imaginação, há um quê de algo se fazendo, desfazendo e, ao mesmo tempo, refazendo-se. Um alimento, um nutriente de fórmulas e composições desconhecidas, sem explicação de porquê ou para quê.

Um ninho de pomba entre as frestas do telhado. Um vão, uma fenda, um sentimento que pensa e um pensamento que sente as dores das noites escuras e a solidão do silêncio. Um buraco na rua e a tábua rasa de uma mente petrificada entre o caos e a tormenta. Nos muros que separam bons e maus, inscreve-se a lista insana entre a civilidade e a barbárie.

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As crônicas do mundo e a poesia do agora vomitam sentimentos para alimentar as amarguras da humanidade. Voam os pássaros, fugindo das tempestades e das loucuras dos novos tempos. Nas imensidões planetárias, vagam viajantes em mentes fugidias, carregando sentimentos toscos que ainda alimentam a terra dos homens.

Às margens dos rios, fortes correntezas levam consigo amor e ódio de um mundo em decomposição. O poder dos tiranos, o império da força e a inglória contumaz de um patriotismo decadente. A força dos fracos, a coragem exilada nos campos de covardes entrincheirados. A bandeira do caos e os dias que nunca amanhecem nos jardins das cicatrizes.

Os livros nas estantes, as histórias ainda não escritas nas páginas dos dias que sempre anoitecem. A fúria humana nas batalhas entre justos e injustos, em busca de glórias roubadas sob a luz da ignorância em noites frias e escuras. Outras páginas, escritas em letras garrafais pelo vento da inconsciência, varrem os nortes da vida. E ainda há histórias que precisam ser escritas, mesmo que nunca sejam lidas. Parem o tempo, se forem capazes, e acendam a luz de seus quartos escuros. Leiam a poesia do agora ou a crônica da noite embriagada que martiriza a consciência.

Nas ruas e avenidas, o asfalto derrete sob o desmando dos políticos e a corrupção entranhada nas engrenagens do poder. Elites inebriadas em discursos e retóricas, alimentadas pela demagogia e nutridas pela hipocrisia. O silêncio da insensatez ecoa da alta cúpula institucionalizada, brindando aos absurdos e às banalidades cotidianas.

O que ainda há entre a flor e o espinho que possa nos ferir? O que ainda não foi escrito? O que dizem as obscuridades do mundo? Ler nas entrelinhas os absurdos que nos alimentam. Libertar-nos das próprias amarras. Alimentar o que nos alimenta e beber de nossa própria fonte, a água que mata a sede de nós mesmos. Os dias que ainda não vivemos e os sonhos que jamais sonhamos. O saber que paira acima de nós e de tudo o que nos oprime — embora não nos sintamos oprimidos.

O arco-íris depois da tempestade, as cores da aquarela da vida que pintam muros e grades que nos aprisionam. O que é preciso ver no escuro? Talvez a luz não queira iluminar, pois a escuridão, quem sabe, se faça necessária. Dualidades que compõem o todo e dão sentido a tudo.

Depois de outras dores, outros rios e outras margens, trafegam transeuntes em busca de histórias não contadas, livros escritos nas páginas da imaginação. E agora, o que fazer com as perguntas que não encontram respostas? O início e o fim de uma história. O início e o fim de um caminho. O início e o fim de tudo em uma história que ainda não foi contada.

A trama humana é esse emaranhado de pensamentos e sentimentos que permeiam nossa condição. Nesse hiato, a dicotomia nos torna contraditórios — e, nessa contradição, nos construímos como seres humanos. O que somos, o que pensamos ser e o que sentimos ser. Nesse mundo de sonhos, sonhamos feitos históricos como arquétipos da evolução e da revolução, com o humano como centro de tudo. Agora, durma — e sonhe com o sonho de um mundo ainda não sonhado.

Luiz Carlos de Proença – Autor do livro: O sol nas margens da noite e A pele do vento

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