Publicado desde 1969
Fundado por José Carlos Tallarico

Não devemos nada à Maria?

Certa vez, em um diálogo sobre fé com um senhor de determinada igreja evangélica, ouvi a seguinte afirmativa: “Não devemos nada à Maria”! Confesso que, naquele momento, não consegui responder, fiquei calada, em um misto de tristeza e indignação. Na verdade, eu não queria responder de forma impensada, em que parecesse um confronto, em uma discussão acalorada, fundamentalista, e que não levaria a lugar algum. Costumo respeitar as pessoas, suas crenças, religiões, pensamentos, mesmo que não concorde.

Mas aquela frase ficou ressoando em minha mente durante muito tempo. Assim, decidi redigir este texto com base nas Sagradas Escrituras, após estudos e em oração, argumentando de forma respeitosa e assertiva. Caberá ao leitor o veredito final.

Não tenho expectativas, nem presunções de convencimento, pois eu mesma, durante muito tempo, também tive dúvidas sobre a fé Católica em Maria, e me questionei se não praticava a idolatria. Cresci na fé Católica de meus pais, porém, frequentei durante muito tempo igrejas Protestantes, evangélicas, assisti a diversos Cultos, palestras, ou seja, conheço bem as críticas recorrentes, os argumentos contrários.

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Creio que as críticas mais ferrenhas acontecem pelo fato de Maria ser venerada pelos católicos como intercessora, em que é saudada na oração da “Ave-Maria” como a mãe de Deus em que também os católicos são acusados de idólatras, devido às imagens.

Vou começar pela figura de Maria. Para compreendermos sua importância no plano de salvação de Deus é necessário rememorarmos o papel da Arca da Aliança, retratada no Antigo Testamente. Analisando os textos sagrados veremos que ela foi construída com construções específicas reveladas por Deus, desde a madeira nobre, a medida, os anjos adornando a arca. Ela representava o encontro da humanidade com Deus. A Bíblia fala que para onde o povo caminhava, a arca ia à frente, como sinal de aliança. No templo de Salomão, quando a Arca entrou, o lugar ficou tão inundado pela presença de Deus que as pessoas não conseguiram permanecer lá dentro, tiveram que sair, diante de tanta luz. A aliança estava dentro da arca, que era o receptáculo para comunicar a presença de Deus, pois, onde ela estava, a glória de Deus se apresentava.

Para a vinda do Salvador, seria diferente? Como poderia o próprio Deus vir ao mundo, nascer, habitar em um lugar que não fosse santo? Não teria como. Deus não escolheria habitar em um lugar que não fosse santo também para vir ao mundo.

Assim, Ele escolheu, preparou a Virgem santa para receber a nova aliança. Ela não é a aliança, mas a arca que nos trouxe a aliança. E assim como os querubins estavam sob a arca, também o arcanjo Gabriel veio sob a casa de Maria, para a Anunciação e a sombra do Senhor a cobriu.

Ela foi preparada como um vaso santo, para receber em seu ventre o Emanuel, o Messias. Por isso foi concebida sem pecado – é a Imaculada Conceição. Ela representa a nova Arca da Aliança. Pelo sim de Maria toda a humanidade pode receber a salvação. Por Maria o paraíso nos foi estendido. Por isso ela é venerada como a rainha de todos os anjos, a mulher do Apocalipse que pisa a serpente, representada com as doze coroas, em referência às doze tribos de Judá. Ela é a nova Eva e Jesus o novo Adão.

É evidente que Deus poderia ter vindo ao mundo sem precisar de ninguém. Ele é Deus! Mas escolheu a mais humilde criatura, a mais santa para abrigar e trazer ao mundo o Salvador. O céu inteiro esperou pelo sim de Maria. O sim dela ao Arcanjo Gabriel representou não somente um ato de humildade, mas de fé, consentimento, obediência e amor a Deus. Assim, por meio dela a humanidade recebeu Jesus.

Mas ela é a mãe de Deus? Ora, se Jesus é Deus, então ela é a mãe de Deus! Mas não no sentido de estar acima de Deus, pois ela foi criada por Ele. Ela não tem poderes por si só. Somente Deus tem o poder. Ela não é onisciente. Só Deus tem a onisciência. Mas Maria ocupa um lugar sagrado: o sangue de Maria faz parte do corpo humano de Jesus. Veja que Jesus é humano e divino. A humanidade de Jesus vem da parte de Maria.

E a veneração dos católicos à Maria, ou aos santos, pois adoramos somente a Deus, remonta aos primeiros cristãos, logo após a morte de Jesus. Eles reconheciam que tanto a Virgem como os santos e mártires estavam em união com Deus, sendo, portanto, intercessores. Mas não porque tivessem poderes próprios, pois nenhum deles tem. Contudo, por estarem unidos a Deus, ou seja, mediados por Cristo, pela ação do Espírito Santo podem interceder por nós.

A oração de intercessão à Virgem, aos Santos, remonta à tradição cristã da Igreja, na Comunhão dos Santos. Repare que, em diversos textos da Bíblia, há relatos de que pessoas santas curavam, como os ossos de Elizeu, em II Reis, ou como aparece no Novo Testamento, em que a sombra de Pedro curava as pessoas, assim como o manto de Paulo também curava. Mas não porque os objetos ou as pessoas tivessem poderes próprios, mas sim porque estavam cheios do Espírito de Deus. Ou seja, por meio de Jesus podiam curar.

Reconhecemos também, assim como os protestantes, que Jesus Cristo é o único mediador. Todavia, acreditamos que unidos a Deus, pelo poder do Espírito Santo, podemos pedir, interceder por todos os que amamos, que necessitam de oração, mesmo pelos que já morreram.

Todavia, não podemos negar a presença de idolatria entre muitos católicos, por pessoas que desconhecem a doutrina, e, na ignorância, agem com demonstrações que ultrapassam a fé, em direção à superstição, ao fanatismo ou até mesmo ao fundamentalismo. A própria Igreja já reconheceu que, por ignorarem o Catecismo (doutrina católica), muitos acabam colocando Maria no lugar que pertence a Deus. Sabemos que o único mediador é Jesus Cristo. Mas reconhecemos a Virgem Maria como nossa advogada, intercessora, como mãe, justamente por ter carregado em seu ventre o próprio Deus!

Um fato importante que gostaria de compartilhar, pois muitas igrejas protestantes ou evangélicas desconhecem é que o próprio Martin Lutero, ainda no século XV, venerava também a Virgem Maria, todavia, com o passar do tempo (mais de cinco séculos), diferentes igrejas começaram a surgir após a criação do Protestantismo, com novas separações e surgimentos de inúmeras outras, inclusive com o aparecimento de muitas seitas, que modificaram grande parte da doutrina que Lutero acreditava e defendia.

Existem atualmente mais de 30.000 denominações protestantes, sendo que muitas desconhecem a doutrina do próprio fundador. A partir do momento que há a cisão e outra igreja protestante surge, e novamente a separação e a criação de outras igrejas, com o passar do tempo as ideias de Lutero foram sendo esquecidas.

Caso o leitor deseje comprovações deste fato, pode procurar nos diversos sermões de Lutero. O discurso a seguir elucida bem a questão:

“Ela com justiça é chamada não apenas de mãe dos homens, mas também a Mãe de Deus…é certo que Maria é a Mãe do real e verdadeiro Deus”. (Sermão Concórdia, de Martin Lutero, vol 24. p. 107).

No texto que segue, de um dos sermões de Lutero, o leitor poderá avaliar por si mesmo e poderá encontrar mais textos que apoiam a doutrina da Igreja Católica:

“Maria é a maior e a mais nobre joia da Cristandade logo após Cristo […] Ela é nobre, sábia e santamente personificada. Jamais conseguiremos honrá-la suficientemente.” (Lutero, Sermão do Natal de 1.531).

Pelo texto acima podemos perceber que ela foi honrada mesmo após a Reforma Religiosa.

E o respeito que dirigimos à Maria está documentado no Novo Testamento:

“Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” […] Por isso, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações”.

E por que rezar a Ave-Maria? Ora, em Lucas, 1,27-41, aparece a saudação de Izabel, revelando que ela estava cheia do Espírito Santo. Como também quando o anjo do Senhor apareceu a Maria:

“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria. Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Perturbou-se ela com essas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação. O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim”. Maria perguntou ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” Respondeu-lhe o anjo:

“O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso, o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. […] Então disse Maria: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra”.

Podemos ver a saudação de Isabel, reconhecendo que Maria era mãe do Senhor, ou seja, mãe de Deus:

“Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre.” “Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor? Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio. Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas!”

Pela saudação do Anjo e pela revelação de Isabel, temos a composição da Ave-Maria:

“Ave-Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre: Jesus”.

Onde está a blasfêmia? Esta oração foi retirada do Evangelho de São Lucas. Na continuação vemos:

“Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte amém. No Rogai por nós? Ora, mas pedimos que ela rogue por nós, isso devido à tradição oral praticada pelos primeiros cristãos, desde quando Jesus entregou Sua mãe aos cuidados de João. Jesus a entregou ao discípulo colocando ele como filho, justamente porque Maria não tinha mais filhos, era viúva, e, portanto, na tradição judaica ela deveria ser entregue a uma figura masculina para que tivesse os cuidados e a proteção necessária, como era o costume na época. Desta forma, Ele entregou Sua Mãe a toda a humanidade.

O leitor pode se perguntar o porquê então de aparecer na Bíblia que Jesus tinha mais irmãos. Mas isto se explica pelo fato de que na língua hebraica a palavra irmãos significa primos ou parentes próximos.  Podemos ver o caso de Abraão, que era tio de Ló, porém chamava-o com a designação de irmão. Isso porque não existe variedade de palavras hebraicas para designar a parentela. Em vários textos aparecem a palavra irmão para designar até mesmo pessoa da mesma tribo. Mas o leitor poderá também encontrar, nas próprias palavras de Lutero, a explicação para o sentido da palavra irmão:

“Agora, a questão sobre a qual que temos que nos debruçar é sobre como Cristo poderia ter irmãos, se Ele era o filho único da Virgem Maria, e a Virgem não teve outros filhos além dele. Alguns dizem que José foi casado antes de seu casamento com Maria… Mas eu estou inclinado a concordar que ‘irmãos’ realmente significa ‘primos’ aqui, pois a Sagrada Escritura e os judeus sempre chamam os irmãos de primos.” (Luther’s Works, Vol. 22 – p. 214-15).

Também o texto do Evangelho de João, em que Jesus faz seu primeiro milagre na vida pública, mostra o poder de intercessão de Maria, em que fica evidente que Jesus atendeu o pedido de Sua mãe. Ele afirmou que não havia chegado a Sua hora, mas, diante do pedido, da intercessão de Maria, transformou a água em vinho. Ou seja, Ele honrou Sua mãe, e nós O imitamos honrando-a também. E ela nos ajuda a amá-lO, a adorá-lO. (Que filho não ficaria feliz ao ver a mãe ser honrada?).

Veja que, no passado, o povo judeu colocava a Arca da Aliança como sinal de fé, na frente das procissões. Na atualidade Maria é a nova Arca. Deus quis nos ofertar as Suas Graças por meio de Maria.

Portanto, vai contra o Cristianismo considerar que Maria foi uma mulher escolhida aleatoriamente, de tal maneira que Deus poderia ter escolhido outra pessoa qualquer. Ela não foi escolhida a uma certa altura da história: ela foi criada e preparada para receber o Senhor. Sabemos que a Arca da Aliança teve que ser escolhida, desde o princípio de sua criação, com os critérios de Deus, com perfeição, seguindo instruções, pois seria o veículo, a mediação para a Glória de Deus. Também Maria foi predestinada por Deus. Quem recebe Maria, recebe também Jesus Cristo, o Verbo encarnado. Por isso Isabel estremeceu diante de Maria, a criança em seu ventre pulou, pois Maria carregava a Glória. Por isso foi e é considerada bem-aventurada.

Quando os magos foram procurar pelo Messias encontraram o menino Deus nos braços de sua mãe. Aquele que não cabia em nenhum lugar do universo escolheu ser adorado por meio da humilde Virgem Maria. Benditos os que entendem esta revelação.

A devoção à Virgem Maria ou aos santos possibilita caminharmos com aqueles que perseveraram em Deus, de que é possível buscar a santidade quando pedimos pela Graça, pois sozinhos não conseguimos, somos humanos. Precisamos da ajuda de Deus. Pela força do Espírito Santos somos transformados. Haverá a união entre a oração e a caridade. Fé e obras no bem. Não somente pela fé, conforme a doutrina Protestante, nem somente pelas obras, segundo o Kardecismo, praticado pelos Espíritas, mas fé e obras, segundo a Doutrina Católica.

Se veneramos, se honramos os lugares sagrados em que Jesus viveu, passou, em que foi sepultado, porque não veneraríamos as pinturas que retratam Nosso Senhor e tantas obras sacras?

Considerando novamente que a imagem de Deus jamais havia sido representada desde a criação do mundo, mas tornou-se visível por meio da pessoa de Jesus Cristo. O Verbo encarnado precisou esvaziar-se de toda a Sua Glória para poder nascer como um humilde menino. Como não retrataríamos, veneraríamos essa imagem Sacra de Nosso Senhor? Como não reverenciar a figura do menino Jesus e de sua mãe?

A imagem é um memorial. Veneramos as imagens por respeito ao que representam. Elas nos recordam os sofrimentos de Nosso Senhor. A oração do “Terço” representa rezarmos e rememorarmos a história de Jesus, Seu Calvário, Paixão e Ressurreição, em ato de súplica, de amor a Deus.

O pecado da idolatria consiste em divinizar as coisas mundanas e as realidades incapazes de manifestar a transcendência, usurpando o lugar de Deus. Idolatria é colocarmos todas as nossas esperanças nas coisas terrenas. As imagens santas, ao contrário, refletem a presença e a bondade divina, ajudando-nos a recordar, a todo momento, a responsabilidade e a missão que compete a cada um de nós.

São o registro de que é possível – apesar de nossa humanidade – alçar ao céu!

Professora Drª Maria do Carmo Lincoln Paes. Pianista, Graduada em História; Pós-graduação em Filosofia; Mestre em Educação e Doutora em Educação. Email: carmolincoln@gmail.com

Referências Bibliográficas
AQUINO, Tomás São. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2004.
BÍBLIA SAGRADA. 209ª ed. São Paulo. S.P.: Editora: Ave-Maria Ltda, 2016.
FARIA, Jacir de Freitas. O medo do inferno e a arte de bem morrer. Petrópolis, R.J. Editora Vozes, 2019.
SCOTT E KIMBERLY, Hahn. Todos os caminhos levam à Roma. Lorena, S. P. Editora Cléofas, 2002.

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