De tempos em tempos costumo meditar esta frase. A primeira vez em que me deparei com ela senti como se um pesado silêncio entrasse em minha alma e, ao mesmo tempo, um vento estrondoso percorresse todos os cantos de minha vida, como a inquirir sobre o que tenho feito dela. E cada vez que retorna à minha consciência fico rememorando meus passos, observando as decisões que tomei, o trabalho que escolhi e o rumo que tenho dado à minha existência.
Pertence a obra “Sermões” do Padre Antônio Vieira. O ato de “meter o tempo entre a vida e a morte” se refere a acordarmos para o propósito de nossas vidas, de não nos deixarmos levar pelas distrações que o mundo oferece, sem compreender e realizar o que nos compete. Consegue ver a possibilidade de ter um tempo para você, de compreender o sentido de sua vida, de se entregar ao que gosta ou ao que sente ser um chamado interior, antes que chegue o momento da morte?
Vou discorrer um pouco sobre a obra para entrar nas reflexões do autor. Narra a história do rei Carlos V, imperador da Alemanha e rei da Espanha, conhecido também como Carlos I. Como todo imperador, seu poderio era ilimitado, detentor de uma imensa riqueza, poder e prestígio. Governava vários povos e era adorado com um deus. Certo dia o rei recebeu um soldado veterano, que era muito apreciado por ele, reconhecido por sua coragem e valentia nos combates e guerras e por sua dedicação à coroa.
Ocorre que foi então surpreendido pelas palavras do soldado que, ao entrar no palácio, apresentou um memorial para deixar seu posto e se retirar das armas, pois, desejava partir livre, sem o dever de lutar em mais nenhuma batalha. Estarrecido, afirmou ao soldado que ele era o melhor de todos no reino e que em breve receberia homenagens por sua valentia e dedicação. Todavia, para sua surpresa, o veterano respondeu que não queria glórias ou reconhecimento, mas apenas se retirar do trabalho:
“Ao menos vos peço que me concedais algum espaço de quietação e sossego, em que possa meter tempo entre a vida e a morte”.
Ao entrar em contato com esta narrativa fiquei imaginando o sentimento do rei diante da decisão do soldado e, ao mesmo tempo, me perguntado sobre o sentido de minha vida, com o trabalho que exerço, com as decisões que tenho tomado e ao que poderia renunciar…
“Concedeu enternecido a licença; retirou-se ao gabinete; tornou a ler o memorial do soldado; e despachou-se a si mesmo. Oh soldado mais valente, mais guerreiro, mais generoso, mais prudente, e mais soldado que eu! Tu até agora foste meu soldado, eu teu capitão; desde este ponto, tu serás meu capitão, e eu teu soldado: quero seguir tua bandeira. Assim discorreu consigo Carlos, e assim o fez. Arrima o bastão, renuncia o Império, desde a púrpura, e tirando a coroa imperial da cabeça, pôs a coroa a todas suas vitórias; porque saber morrer é a maior façanha”.
Quando li este relato senti um misto de emoções. Fiquei admirada com a renúncia e a coragem de ambos, contudo, impactada e comovida com a decisão do rei em abandonar tudo. Veja que renunciou ao poder, à fama, a uma vida glamorosa, cheia de riquezas, conforto, prazeres, porque compreendeu que tudo o quanto vivia era, na verdade, uma grande ilusão. Assim, decidiu que não ficaria esperando pela morte, que ela não o surpreenderia e fosse então tarde demais.
Com determinação e muita coragem deixou tudo para trás e foi recolher-se no “Convento de Juste”. Escreve ainda Padre Antônio Vieira: “e porque a primeira vez soube morrer Imperador, a segunda morreu Santo”.
Note que o soldado, quando fez menção de “meter tempo entre a vida e a morte” acabou por inspirar o rei; sua atitude despertou no imperador questionamentos sobre sua vida, a realeza, a glória terrena, coisas que tinha e que não faziam mais sentido. Então, tocado e inspirado por tão nobre atitude do amigo, abdicou de todo o seu império, títulos, conquistas e no ano de 1556 foi para o Mosteiro, vindo a falecer dois anos mais tarde.
Padre Vieira aborda também a história de Jó:
“Os dias de minha vida, queira ou não queira hão de acabar-se brevemente. O que pois Vos peço, Senhor, é que antes da morte me concedais algum tempo; em que chore meus pecados, em que trate só de compor a minha consciência e aparelhar a minha alma”.
E conclui com a história do rei Davi, dizendo que ambos honraram muito a Deus com suas vidas, fizeram o bem, com obras em prol dos pobres, dos doentes e necessitados, mas mesmo assim, não se sentiram prontos para enfrentar a hora da morte, em que questiona:
“Agora pergunto, e se qualquer de nós se achara com a vida de um destes homens, não se atrevera a esperar pela morte muito confiadamente? E, contudo, nem Davi, nem Jó com tanto cabedal de virtudes, com tantos tesouros de merecimento, e o que é mais, com tantos testemunhos do Céu, tiveram confiança para que os tomasse de repente o momento da morte; ambos pediram tempo a Deus para meter tempo entre a morte, e a vida”.
Diante de reflexões tão profundas fico me perguntando o que poderia renunciar em minha vida… Reconhecendo que, diante do que o rei abdicou, qualquer coisa terrena que tenhamos parecerá irrisória, contudo, não há como comparar a vida de cada um de nós, a dimensão da renúncia pessoal.
Há momentos em nossa trajetória em que precisaremos renunciar: talvez a um emprego melhor, a um cargo importante, mas que nos afastará da família, das pessoas que amamos; ao egoísmo, às atitudes mesquinhas, ao reconhecimento pessoal, à soberba: ao mal. Diversas circunstâncias poderão se apresentar com a aparência de ser o melhor a fazer ou de representar sucesso, felicidade, porém, podem ser distrações, armadilhas, ilusões que nos afastarão do que realmente importa.
Mas como saber o momento de renunciar? Acredito que há uma consciência dentro de cada um de nós que representa o sentido de nossa existência. Por vezes pode ficar abafada diante de tantas seduções, das ilusões que o mundo oferece. Por isso a necessidade de silenciarmos, de nos aproximarmos de Deus e permanecermos nEle. Quando nos afastamos de Deus, pouco a pouco o coração vai endurecendo e fica mais difícil escutar o chamado interior.
Por fim, é importante termos humildade em reconhecer nossos erros, observarmos as escolhas que fazemos e, com coragem, renunciarmos ao que seja necessário para o encontro com o Senhor, enquanto ainda temos “tempo”.
Professora Drª Maria do Carmo Lincoln R. Paes. Pianista, Graduada em História; Pós-graduação em Filosofia; Mestre em Educação e Doutora em Educação. Email: carmolincoln@gmail.com