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Fundado por José Carlos Tallarico

Entre o silêncio e o sentido

E agora, o que fazer com o sentimento que não quer sentir as dores nem as auroras dos dias que ainda não amanheceram? Sobra um pouco de silêncio para dialogar com o que ainda pulsa, mesmo ferido. Há corações que insistem em sublimes declarações de amor eterno, embora tudo pareça quase sem sentido. Mas, afinal, que sentido tem o sentido, quando o sentido é apenas o esforço de dar sentido ao próprio sentido? Camus talvez sorrisse desse paradoxo — o homem que, mesmo diante do absurdo, continua a buscar um significado para existir.

Há algo escondido, talvez arrependimento, talvez o desejo de perdão prestes a florir. Entre portas e janelas, o ar parece pensado, e um gato observa o mundo do alto do telhado. A fome dos animais se mistura à textura das paredes trincadas. Era um pouco tarde, e as estrelas, já despertas, acendiam o início da noite. Clarice Lispector diria que há algo sagrado no instante que hesita entre o silêncio e a revelação, como se a alma respirasse entre o que é e o que ainda será.

No meio da sala vazia, o jarro cheio de água quebrou-se, e o som seco da ruptura ecoou no silêncio. Como no livro do Eclesiastes, o vaso parte-se junto à fonte, e o pó retorna à terra. O ar respira o sol, e o vento leva os sentimentos para longe — talvez para um lugar onde ainda se possa recomeçar. A sobra das refeições continua sendo servida, mas é pouca para tantas bocas, e pouca é a noite para acordar o dia.

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As horas passam e revelam aos instantes os segredos do tempo. Bergson lembraria que o tempo não é o dos relógios, mas o que flui por dentro — o da consciência, o da lembrança viva. Mesmo assim, os momentos resvalam em um sorriso que sobrou nas faces, nas memórias que ainda têm sabor de eternidade. Todas as páginas de um livro, todos os versos cortantes de uma poesia ferida, são folhas e frutos de corações ausentes. São retratos do que fomos, e ainda somos, apesar das perdas.

E amanhã? O que dirão os sentimentos que ainda ferem? Talvez mais uma notícia boa, o bastante para encher as páginas dos jornais dos acontecimentos cotidiano. A cabeça da cobra, o rabo da serpente, o veneno que envenena a mente — metáforas da mesma banalidade que Nietzsche via no rebanho moderno. A rosa de outono, o frio do inverno, o deserto do Atacama, as cordilheiras dos Andes e a Amazônia brasileira — tudo se mistura num mesmo mapa de contradições e belezas.

Bom dia, boa tarde, boa noite: o sonho adormeceu, mas os sentimentos ainda estão acordados. Nos quintais e nos jardins, há folhas secas, flores murchas e o pulmão da humanidade que respira com dificuldade. Rios de águas cristalinas nascem na fonte e morrem nas mãos sujas de quem sacia a sede da soberba, alimenta a banalidade e nutre o que há de podre no reino da podridão. Como disse Drummond, “o homem, as viagens, o mundo” — e a pedra ainda está no caminho, lembrando-nos da persistência do obstáculo e do homem que o enfrenta.

A noite cai novamente, e as luzes dos vagalumes clareiam o quarto escuro, cheio de livros e versos em agonia. A fera enjaulada grita por socorro e implora luz às sombras que ainda aprisionam os dias no castelo abandonado do tempo. As mãos inefáveis afagam as faces, e as nuvens chovem para alimentar os trigais e apaziguar a fúria do sol ardente. Kierkegaard talvez dissesse que é na angústia que o homem se reconhece — não como quem teme o nada, mas como quem vislumbra a possibilidade do ser.

As montanhas, repletas de esperança, sonham com o infinito, enquanto os pés permanecem firmes no chão. A grande roda da vida gira, os versos são prelúdios, e a sinfonia é sideral. Como em Cecília Meireles, tudo o que é efêmero traz em si a eternidade do instante. O Pai, a Mãe, os filhos da terra — todos guardiões da vida em abundância. Heróis esquecidos em fotografias quase apagadas pelo tempo. E, apesar de tudo, ainda resta o sentimento, a paz, a fraternidade e a exuberância dos dias que continuam a amanhecer — como se, ao fim de toda noite, a alma humana ainda ousasse esperar o milagre de um novo sentido.

Luiz Carlos de Proença – Autor dos livros: O sol nas margens da noite e A pele do vento

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