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Dez anos da LBI: Que ninguém precise pedir permissão para existir

No dia 6 de julho, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) completa dez anos. Na coluna desta semana, quero refletir sobre essa Lei, sua criação, seus princípios e, sobretudo, o abismo que ainda existe entre o que ela afirma e o que vivemos na prática.

A Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em 2006, é um tratado internacional que visa promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo dos direitos humanos por todas as pessoas com deficiência. O Brasil assinou e ratificou a Convenção em 2008, conferindo-lhe status constitucional. Isso obrigava o país a adotar leis internas que garantissem os direitos ali previstos.

A LBI foi elaborada com forte participação da sociedade civil, especialmente de movimentos de pessoas com deficiência, conselhos de direitos, especialistas em acessibilidade, direitos humanos e políticas públicas. É considerada uma lei cidadã, pois foi amplamente debatida em consultas públicas, audiências, fóruns e conferências nacionais. O projeto tramitou por mais de dez anos, inicialmente sob o número do projeto de lei 7699/2006, sendo sucessivamente revisado e aprimorado até sua aprovação.

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A LBI representa um marco legal, ao consolidar e ampliar os direitos das pessoas com deficiência, trazendo para o centro da legislação o modelo social da deficiência. Esse modelo desloca o foco da limitação individual e destaca a importância das barreiras sociais e ambientais como fatores que restringem a plena participação. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) possui 127 artigos e fundamenta-se em valores como dignidade, autonomia, acessibilidade e cidadania.

No entanto, vivemos em um país onde as leis avançam, mas as mentalidades parecem caminhar lentamente — como se arrastassem sob o peso dos preconceitos, à sombra da ignorância e no conforto que muitos ainda encontram na exclusão.

Fora das páginas formais dos textos jurídicos, a realidade frequentemente contrasta com as intenções nobres da lei. Tropeçamos em calçadas quebradas que mais parecem obstáculos arquitetônicos feitos para impedir a passagem. Esperamos longas horas em salas onde a acessibilidade é apenas uma promessa não cumprida. Somos silenciados em processos seletivos onde nossas competências são ignoradas em favor de preconceitos velados. Somos invisíveis em escolas que não adaptam seus currículos e em discursos oficiais que tratam a inclusão como item secundário, de pouca prioridade.

A exclusão que vivemos não é acidente, nem falha pontual. Ela é estrutura, rotina, persistência. E essa exclusão não se resume à falta de rampas, de elevadores ou de materiais adaptados — que já seriam problemas suficientes. O que mais dói e aprisiona são as barreiras invisíveis, as barreiras atitudinais, que nascem da falta de empatia e da incapacidade de enxergar o outro como um ser humano completo, complexo e capaz.

Muita gente ainda acredita que inclusão é um gesto de bondade, uma concessão, um favor que se faz aos “mais frágeis”. É comum ouvir: “Vou ajudar porque tenho dó”, como se a pessoa com deficiência fosse um objeto de pena — e não um sujeito de direitos.

A inclusão não é favor. Não é caridade. Inclusão é o reconhecimento do outro como ser humano pleno, com direitos inalienáveis, com sonhos e com uma história para contar. Incluir é abrir espaço — não apenas para que o outro entre, mas para que ele fique, pertença, contribua e brilhe em sua singularidade. E, acima de tudo, para que não precise agradecer por isso, porque é um direito garantido pela Constituição.

Essa transformação — da exclusão para a inclusão plena — não é responsabilidade apenas do Estado, das leis ou dos órgãos públicos. Embora sejam atores fundamentais, não são os únicos.

Ela está no olhar do professor que acredita no potencial do aluno com deficiência e adapta suas práticas para garantir o aprendizado. Está no trabalho do jornalista que pauta o tema com respeito, combatendo estigmas e estereótipos. Está nas empresas que enxergam além das limitações e reconhecem as competências únicas que pessoas com deficiência têm a oferecer. Está nas crianças que aprendem, desde cedo, a conviver com a diversidade — sem medo, sem preconceito, aprendendo a respeitar e a valorizar o diferente.

Incluir é um ato de escuta, humildade e reconhecimento. É escutar antes de supor, perguntar antes de decidir, aceitar que a diversidade não é um problema, mas uma riqueza que nos engrandece como sociedade. É um processo constante, uma caminhada que não tem fim, porque a sociedade é dinâmica, mutável, sempre em construção.

Mas essa transformação precisa de urgência. Enquanto idealizamos uma sociedade perfeita para um futuro distante, vidas seguem sendo negadas no presente. Direitos básicos são ignorados, sonhos são adiados ou destruídos, oportunidades são perdidas.

Se não mudarmos o que consideramos “normal”, se não questionarmos nossos hábitos, crenças e estruturas, a exclusão continuará se disfarçando de rotina, de normalidade. E isso é um ciclo cruel que precisamos romper já.

Por isso, escrevo. Porque repetir é resistir, e resistir é existir. Repetir a importância da Lei Brasileira de Inclusão não para ser insistente, mas para evitar que ela se torne letra morta, um amontoado de artigos esquecidos nas gavetas do poder. Repetir para que ela continue sendo o convite vivo à mudança que propõe — uma mudança que nos chama a ser melhores, mais justos, mais humanos.

E, acima de tudo, para que ninguém mais precise lutar só para ser visto, só para estar, só para viver com dignidade. Porque ser igual é ter o direito de ser diferente sem medo, sem vergonha, sem pedir desculpas.

 Luiz Carlos de Proença – Conselheiro Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Capão Bonito SP – Autor do livro: O sol nas margens da noite e A pele do vento

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