Publicado desde 1969
Fundado por José Carlos Tallarico

Contorno de mim

Anoitece outra vez. Os jardins florescem antes da primavera, enquanto a dor perpassa os momentos para doer entre os instantes. Em outros tempos, outros momentos para aliviar as dores dos próximos dias. Amanhã virá, como sempre vem, e será feito de versos sublimes. Talvez porque, como escreveu Santo Agostinho, o tempo seja um mistério: se ninguém pergunta, sabemos o que é; se nos pedem para explicá-lo, já não sabemos.

Talvez os próximos instantes sejam um tempo qualquer disfarçado de sonho, apenas para sobreviver. Tudo se repete para ser outro em outras noites, sob outras estrelas, que brilham outra vez. Outras noites deslumbram seus mistérios, e a imaginação pergunta: como seria a lua se pudesse tocá-la? Octavio Paz dizia que a poesia é conhecimento e salvação; talvez seja também o toque do intocável, o vislumbre do impossível.

O dia amanhece, mas a chuva não quis ver o sol. Choveu o dia todo, saciou a terra, fez germinar a semente. Agora é noite, e logo os dias amanhecem outra vez. Os jardins florescem, e as faces desconhecidas dos novos tempos repousam sob os olhares do infinito. O tempo descansa nos braços da imaginação, e cada palavra, cada verso, compõe um momento, dando sentido a cada lágrima e a cada sorriso, mesmo os mais tristes.

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Poetiza-me nesses simples versos. Poetiza-me e refaz os momentos que ficaram ausentes.

Tenho sede, tenho fome, sacia-me. Tenho caminhado por estradas que se dobram sobre si mesmas. Talvez a poesia me encontre por aí, como sugeriu Rainer Maria Rilke, nas esquinas de alguns versos, onde “procurar o fundo das coisas” seja o único caminho possível.

A poesia me faz ver o todo. A poesia me faz ver o invisível. A poesia me faz dizer o indizível. Porque, como Clarice Lispector escreveu, “o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós”. A poesia me faz caminhar, mesmo no descaminho. A poesia é em mim inteireza e fragmento. E o silêncio é também feito de poesia.

Sob a noite, a fome da lua devora o brilho das estrelas. Sob a noite, um dia de sol se esconde apenas para aquecer o silêncio e sentir o tempo afagando o rosto de um sorriso triste. Mais um dia, mais um instante, mais um momento que se eterniza na profundidade de um olhar.

Entre um momento e outro, um pouco de alguma coisa se desfaz ao tocar o inatingível. O imaginário compõe o todo, ainda um pouco escuro, mas mesmo assim, é possível ver com os olhos d’alma. Heidegger diria que o ser é um vir-a-ser, sempre em movimento, nunca fixo. E talvez seja essa inquietação que nos faz viver.

A liberdade se aquieta na suavidade dos líricos momentos. É tão sublime o tempo que passa vagarosamente e deixa em nós o inesquecível, o imponderável, e tudo aquilo que nos faz ser o que somos e o que podemos ser.

Tudo está aí para ser vivido. Mas há algo que nos impulsiona e ao mesmo tempo nos aprisiona. Jean-Paul Sartre nos lembra que o homem está condenado a ser livre – e talvez seja essa liberdade que, paradoxalmente, nos pesa e nos define.

O amor ama em sonho. Em sonho, se dissolve o dissabor e o amargor das paixões. Um pouco de dor, um desejo reprimido no vazio dos dias por vir. Mas tudo, de repente, se faz em palavras que escapam aos dedos nas frias manhãs. Aos poucos, os instantes se compõem, e tudo se diz na leveza das palavras e na suavidade dos versos.

Dúvidas e incertezas sedimentam esse longo caminhar. A alma pede um pouco de paz. Como Saramago sugeriu em O Conto da Ilha Desconhecida, o silêncio pode ser tanto um refúgio quanto um abismo, e nele se escondem os sonhos mais profundos.

E o amor abraça um pouco mais. Contempla o silêncio entre flores no jardim das ausências. Vem ao encontro do desconhecido e depois se deixa levar por oásis nutridos em utopias. Sonha um pouco mais. E mais adiante, livra-se das asas. Distante, logo ali, os mesmos olhares, os mesmos sorrisos, as mesmas lágrimas. Resta-me um cálice de silêncio sobre o escuro olhar, que aos poucos se faz verdade. Porque, como um sinal de liberdade, tudo se refaz no contorno de mim.

Luiz Carlos de Proença – Conselheiro Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Capão Bonito SP – Autor do livro: O sol nas margens da noite

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