Publicado desde 1969
Fundado por José Carlos Tallarico

A margem incerta da existência: entre sonhos, ilusões e a geopolítica do medo

A luz permanece acesa e os momentos ainda estão trancados no quarto escuro. As paredes guardam paisagens artificiais e restos de umidade. O vento forte varre o quintal e a poeira leva consigo folhas secas das árvores das ilusões. Algum tempo depois, a efemeridade dos pensamentos toscos e dos sentimentos artificiais se dissipa. A meta é sonhar a cada instante, para acordar em outros amanheceres, em sublimes manhãs. Mas a realidade frustra a expectativa de que o futuro será melhor. O sonho atravessa as noites escuras e os dias que ainda não amanheceram. É primavera, e as flores estão em delírio.

De repente, é noite outra vez, e as belas paisagens surgem como miragens do infinito. Os dias chegam, os novos tempos também, e as tardes sempre retornam. Outra vez, em algum lugar, nas margens incertas de algo indefinido. Mas ainda há o nada, e o mundo perdido nas profundezas de pensamentos superficiais. Nas margens das ilusões, flores petrificadas e águas podres saciam a sede sobre o asfalto quente. Manhãs inquietas se misturam ao sabor amargo do café já frio.

Entre os momentos e os instantes que estão por vir, o meio-termo, a figura geométrica e o sentimento em 360 graus tecem as redes neurais do infinito, que aglutina o tudo e o todo. E, entre margens, flores sorriem e as águas oferecem sua bênção.

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As peripécias do tempo, às vezes, voam na imensidão do infinito; em outras, caminham por labirintos quase intransponíveis. Insetos, pedras e pensamentos tortuosos sangram a pele e os pés descalços, ferindo os passos entre pedras e espinhos. O sonho, sob o sol ardente, e as noites em devaneios despertam em pesadelos que invadem os próximos momentos.

São dores que choram. São lágrimas em olhares ávidos, ferindo ainda mais as feridas do coração da humanidade. Palavras soltas em um texto em busca de sentido. O mundo está ferido pelas guerras: vidas machucadas, lágrimas sem olhares. Tais conflitos refletem a complexidade geopolítica e a crise humanitária de nosso tempo (ONU, 2024).

Mais um dia de um tempo esfacelados por resquícios de crueldades. A vida dorme entre os escombros de esperança que ainda quer ver o sorriso de um sonho. Febre alta, suor frio e madrugadas vazias esperam, extasiadas, pelo sol.

O tormento é um sentimento de impotência diante de tanta raiva e imbecilidade. Não, não é o mundo que está doente: é a humanidade, perdida na encruzilhada de horizontes descoloridos e na esperança desacreditada do amanhã. Em torno de nós, um painel de absurdos. Cores se misturam em pensamentos que se decompõem, sentimentos que nutrem corações e mentes. O desejo e a necessidade, o consumo e o consumismo. Nessa ótica, o consumo se torna a lente através da qual a vida é vista com superficialidade e as relações são estabelecidas, em uma sociedade líquida e individualista (BAUMAN, 2008).

A política e suas faces: mãos sujas e o poder da destruição. A geografia do medo e o mapa da exclusão. Os abutres e o ovo da serpente alimentando ervas daninhas no jardim do caos. O poder bélico descolore o azul, e a fumaça engole o sol, escurecendo dias que ainda não amanheceram. A bandeira do ódio é hasteada sobre as cinzas da ignorância que contempla as atrocidades humanas.

Agora, silêncio. Os mares se agitam, barcos seguem a fluência das águas. Inquietos transeuntes percorrem as margens da existência ao encontro de si mesmos. No quarto escuro, desenha-se o sol, que logo se apaga ao cair da chuva. Depois de outras manhãs, novos anseios percorrem caminhos diferentes que levam ao mesmo lugar.

Talvez sejam apenas sonhos, ou pesadelos fugindo das noites escuras. Os anéis de Saturno, as mãos, os dedos, o trono vazio do rei deposto. A lua de Júpiter e a estrela d’alva brilham no caminho da Via Láctea, sonhando com a saudade de outrora. Seguir em frente, equilibrando-se sobre a linha do horizonte, respaldado pela esperança.

O cenário mundial e os avanços tecnológicos em todos os aspectos. A ideologia dominante, sob a égide do sistema capitalista, jogando-nos uns contra os outros. O neoliberalismo, por exemplo, é visto como um projeto político de reestruturação do poder das classes dominantes (HARVEY, 2007).

Nesse ciclo vicioso, somos cobaias; bebemos a água podre da nossa própria poluição. A questão climática, o projeto de poder, as explorações em nome de uma soberania que mantém privilégios dos que sempre ostentaram. A urgência climática exige, no entanto, ações globais imediatas, dado o crescente impacto dos fatores antropogênicos (IPCC, 2022).

Ainda existem outros caminhos, apontando para novas possibilidades. Um caminho que revele mais solidariedade e compaixão em meio a toda essa competitividade do ter e do poder. Mesmo em horizontes descoloridos pela empáfia de quem se acha superior, ainda assim é possível ter esperança. É possível pensar e sentir uma nova ordem mundial. Que cultivemos nossos jardins para colher, no amanhã, os frutos de novas esperanças.

Luiz Carlos de Proença – Autor dos livros: O sol nas margens da noite e A pele do vento

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