Publicado desde 1969
Fundado por José Carlos Tallarico

A lucidez de um instante ausente

Um texto qualquer, nascido do caos. Um cenário ficcional dentro de uma realidade em combustão, onde a guerra se traveste de rotina e os conflitos atravessam as paredes das casas, as frestas das janelas e os silêncios das almas. O poder político, o poder econômico e a supremacia de uma política contaminada pela banalidade humana — como advertiu Hannah Arendt — dissolvem-se em discursos vazios. O real e o ficcional se entrelaçam, e a paisagem, ainda por desenhar, enfeita o horizonte da artificialidade. Há uma névoa de mentira sobre o contorno da esperança.

O que diz a mensagem encontrada dentro de uma garrafa, lançada nos rios que afogam em saudade e choram sob a lua enluarada? Talvez seja como em Fernando Pessoa — um grito de alma embriagado de silêncio. O caos está desenhado em painéis imemoriais, grafado nos muros da história, e a mensagem fala sobre o futuro do sentimento, do amor à deriva. O pensamento, esse construtor e demolidor de mundos, ergue pontes e destroça certezas num átimo de coragem ou covardia. Entre as ruínas, ainda floresce uma ideia.

As portas entreabertas, as janelas fechadas e as tardes melancólicas alimentam uma geração artificial, que semeia sementes do nada em quintais neolíticos — ecos distantes do Gênesis, agora reescrito em código binário. Debaixo do escuro das noites efêmeras, o tempo já perdeu as horas; o relógio, como no Eclesiastes, esqueceu-se de sua missão, e o amanhã atrasou para que o hoje vivesse com intensidade. E entre lamúrias, lamentações e lágrimas, desfiguram-se as faces impuras da imperatriz da discórdia.

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O poder — e o “puder”, distorção da ética — reina. Ditadores e sanguinários querem o mundo para si, enquanto a Terra se parte em classes e o todo se perde entre as partes.

A indústria da guerra recruta seguidores, doutrina suas mentes e envenena os sonhos. O poder das armas, em sua arrogância, ignora a fragilidade da humanidade, que desmorona ao tentar defender seus ideais. Acordos são firmados na calada da noite, não para salvar, mas para manter o domínio de seus pares.

Os patrocinadores do caos seguem impunes. A névoa cinzenta cega os olhares, obscurece os afetos. A liberdade — tal qual em “1984”, de George Orwell — perde-se na fumaça da estupidez. Não há sonhos entre os escombros, apenas estilhaços da realidade lançados ao vento da impunidade. A verdade, amordaçada, sucumbe entre mentiras bem-vestidas e absurdos legitimados.

Queria apenas escrever um texto qualquer, embrenhado em sentimento, conduzido pelos caminhos da vida. Tudo poderia ser simples, mas nós, humanos, somos um emaranhado de incógnitas. Somos o simples inserido na complexidade que nos humaniza.

Somos inteiros feitos de pedaços — como dizia Clarice Lispector, “somos mais vastos que nós mesmos”. Somos realidades caminhando pelas estradas dos sonhos, alimentando os pesadelos de todos os dias. Terra, água, vento, sol e chuva — somos natureza em carne e poesia. Construtores de nós, mas destruidores também, em nome da nossa fugacidade.

O que diz esse texto? É uma colcha de retalhos. Uma aquarela de cores difusas. Um arco-íris fugindo da tempestade. Um verso de Drummond, atravessado por pedras e ternura. É convite: recite uma poesia, mergulhe no oceano dos sentimentos. Um poeta, um cronista, e suas linhas tortas tentando escrever o que o coração não ousa calar. Em uma tarde qualquer, a ternura ainda resiste.

Os sonhos se perdem nas noites escuras, e os pesadelos escancaram a nossa fragilidade em plena luz do dia. As páginas em branco, à espera de uma mão trêmula, ainda esperam ser preenchidas — mesmo sob a luz fraca de um lampião, como nos tempos em que se lia Graciliano à beira da esperança. É o escuro de uma noite solitária. São lágrimas presas no riso triste de quem observa o mundo com olhos de espanto. Ainda que os jardins estejam distantes, como os de Neruda, fluirão as essências sobre os infinitos que nos compõem.

Agora, o momento se extasia. A efemeridade vagueia sobre a perenidade e mergulha na lucidez de um instante ausente. Entre o presente e o futuro, o passado nos molda. A criança ainda brinca no jardim da inocência. A beleza oculta das pequenas coisas — como pregava Manoel de Barros — nos abraça. As flores, mesmo depois da primavera, resistem.

Conta-me uma história com final feliz, mesmo que seja como a de “A Vida é Bela”, onde a beleza se insinua entre os escombros. Escreva-me versos que machucam sem causar dor. Nas páginas ainda brancas, sob a espera de uma noite de luar, resta o gosto da vida. A comédia humana continua, e nós seguimos, metáforas ambulantes dos nossos próprios dias.

Luiz Carlos de Proença – Conselheiro Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Capão Bonito SP – Autor do livro: O sol nas margens da noite

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