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Fundado por José Carlos Tallarico

A inteireza do invisível

Talvez, em algum instante estranho e inesperado, surja em mim uma inspiração poética que traga à tona algo que nem sei que há em mim. Como diria Clarice Lispector, “minha alma tem o peso da luz”. Pode ser numa bela manhã de sol ou num dia chuvoso, sob um céu azul ou cinzento, pouco importa —, desde que num ínfimo olhar se revele a exuberância do ser, a beleza de simplesmente existir.

Que os dias reservados para serem vividos entre buscas e silêncios se tornem manifesto dos sonhadores — àqueles que, como Dom Quixote, veem gigantes onde o mundo só vê moinhos. Que sejam fortes, e que essa força se manifeste como uma revolta poética, uma revolução de sentimentos. O amor, afinal, como canta Caetano Veloso, “é a coisa mais triste quando se desfaz”, mas é também a força que move os oceanos. E a vida, como bem nos lembrou Nietzsche, quer ser vivida com intensidade — e não apenas suportada.

Talvez, num verso, se encontre tudo. Talvez tudo seja imaginação. E se for, que seja como em “A invenção de Morel”, onde a imaginação constrói mundos reais. Porque sempre haverá um amanhecer, mesmo quando a noite parece não ter fim — como nos salmos antigos: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã. “

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Dorme esta noite. Descansa. E se puder, sonhe. Sonhe quanto for possível. Não espere que a vida seja fácil — como escreveu Guimarães Rosa, “viver é muito perigoso”, mas também é belo. O caminho pode ser longo, mas a chegada talvez esteja logo ali — após o próximo passo, depois de mais uma dor. Olhe bem: talvez você consiga enxergar além de si mesmo, como no cinema de Tarkovski, onde o visível esconde o invisível essencial.

Está tudo bem. Dorme. Aquiete o ser, afague à noite, mesmo que seja escura como em “O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa. O que me espera? Quem me espera? Onde deixei aquilo que agora procuro? Meu coração arde. São flores à espera da primavera, como no poema de Drummond: “As flores são reais, mesmo quando nascem no vazio. “

Um rio de águas profundas corre dentro de mim, e ao longe, além do que o olhar alcança, há um barco solitário no horizonte, como na pintura de Caspar David Friedrich. Depois que eu passar, ficarão os rastros, as memórias esquecidas, e um pouco da lembrança das belas manhãs que não deixei escapar. O relógio já não conta mais as horas — e o tempo, talvez, nem precise saber que horas são. Tudo se torna um lapso, um instante entre dois silêncios, como diria Octavio Paz.

A semente germinou, a flor desabrochou, o fruto saciou a fome da poesia. E o mundo sorriu nos lábios da imaginação, como uma criança num conto de Mia Couto. Quem plantou a semente? Quem colheu o fruto? O sol caminhava por longos caminhos, sem saber se era partida ou chegada — como Ulisses em sua eterna errância. As nuvens, vagarosas, seguiam seus instintos — por vezes dormiam, por vezes despertavam só para dizer “bom dia”. E depois vinha a noite. A noite escura, onde nem mesmo as lágrimas do vaga-lume podiam ser vistas. As estrelas estavam distantes demais naquela noite.

Um dia, você ainda vai dizer que valeu a pena viver tudo o que viveu. Que as dores, os choros, os lamentos, fizeram seus dias durarem mais. Talvez, em pleno juízo, alguém ainda deseje conversar com o sol — como em “O Pequeno Príncipe”, com seus rituais de pôr do sol —, num papo leve entre velhos amigos. Ainda é cedo para ir embora. Senta, vamos tomar um café. Saborear a vida, poetizar o momento sob o afago da manhã. A cadeira está vazia. Senta aqui.

De onde vem esse cheiro? Parece saudade — essa palavra que só existe em português, como lembrança encarnada no tempo. Uma essência que já senti antes, talvez em outra vida, como no eterno retorno de Borges. E a noite chega, enquanto eu espero pelo brilho das estrelas. Não sei para onde vou, mas estou indo. E, ao mesmo tempo, estou chegando. Não espere que a porta esteja aberta, nem que a luz esteja acesa. Talvez, em algum lugar, você se encontre. É um sentimento que sempre se regenera.

A poesia se manifesta nos tempos difíceis. Sonho, poesia, utopia — é preciso sonhar, sempre. Como nos versos de Paul Éluard: “Existe outro mundo, mas ele está neste.” Sonhar um sonho que seja vida profundamente vivida, celebrada no verso que atravessa muros e quintais, toca corações e mentes, e se torna um manifesto sagrado pela vida.

Todas as flores dizem ao jardim: “eu existo”. E nas manhãs da vida, os versos florescem, nutrem o ser que habita em mim. Um dia, um sonho, sonhando às margens de si mesmo. E o ser humano amado na divindade que se humaniza — como Cristo em sua mesa — e faz do amor um banquete, uma mesa farta. É dele que se alimenta tudo o que há em nós. E dele germina a semente de uma nova geração.

Anoitece outra vez. E os jardins florescem antes mesmo da primavera chegar. A dor perpassa os momentos, para doer entre os instantes. Mas em outros tempos, e em outros momentos, haverá alívio. Amanhã será outro dia — e em outros dias, outros versos se farão nos instantes mais sublimes. Talvez sejam apenas fragmentos de tempo, disfarçados em sonhos, querendo apenas viver o próximo instante.

Tudo em nós se move para ser outro — em outras noites, sob outras estrelas, só para brilhar de novo. E quando a noite vier, nos seus mistérios, haverá espaço para imaginar como seria tocar a lua. E se o dia amanhecer só para ver o sol, mesmo que a chuva insista em esconder a luz, que chova, que sacie a terra e permita à semente germinar.

É noite. Logo os dias amanhecem. Os jardins florescem. E as faces ainda desconhecidas dos novos tempos surgem sob os olhos do infinito que repousa nos braços da imaginação. Cada momento se refaz no silêncio lúcido, onde cada palavra, cada verso, justifica a lágrima e o sorriso — mesmo que seja um sorriso triste.

Poetiza-me nos instantes em que estive ausente. Tenho sede. Tenho fome. Caminhei por tantos caminhos. Quem sabe, a poesia me encontre por aí, nas esquinas de um verso, semeando sonhos no terreno fértil da esperança. Porque a poesia me faz ver o todo. Me faz ver o invisível — como dizia Saint-Exupéry, “o essencial é invisível aos olhos”. Me permite dizer o indizível, como em Emily Dickinson, com seus versos que sussurram o infinito. Me faz seguir, mesmo nos descaminhos.

A poesia está em mim. E de mim faz a inteireza que sou. Toda voz é poesia. E o silêncio, ele mesmo, é pura poesia. Sob a noite, a lua brinda com fome o brilho das estrelas. E mesmo no escuro, há um dia de sol apenas para aquecer o silêncio e afagar a face de um sorriso triste.

Mais um dia. Mais um instante. E mais um momento que se eterniza na profundidade de um olhar. Nas noites de estrelas, carrego o silêncio de quem olha para dentro. E nesse olhar silencioso, algo fica para sempre. Imagino o silêncio me olhando de volta, perplexo. Calado, ouço os passos dos próximos instantes. E, na lucidez do silêncio, perfazem-se os versos.

Luiz Carlos de Proença – Conselheiro Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Capão Bonito SP
Autor do livro: O sol nas margens da noite

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