Publicado desde 1969
Fundado por José Carlos Tallarico

A beleza do inesperado

Era um país e uma história quase verdadeira. Os momentos preenchiam o tempo, passando mansamente diante de olhos que buscavam outros horizontes. Pensamentos se emaranhavam em sentimentos profundos. O mundo parecia uma aldeia global, onde tudo se entrelaçava — intocável, inalcançável. Era um vazio constante, cheio de incógnitas e algo inesperado. À tardezinha tudo se suavizava sob o desabrochar da imaginação que olhava a noite com um olhar sentimental.

Pelas veredas das infinitas buscas, entre versos e palavras, a poesia se faz e se refaz nas artimanhas do sentir. Algo fala a si mesmo, mas o mesmo se recusa a ouvir. Fala, então, aos resquícios de ternura deixados à beira de qualquer caminho. À margem de uma vereda distante, entre o sonho e a realidade, uma ilusão desiludida caminha por descaminhos, rumo ao desencontro — como o Dom Quixote de Cervantes, movido por ideais que o mundo esqueceu.

Nas manhãs, o alívio: traçar novos caminhos sem deixar de ser o que se é. Não escrevo para dizer o que é, nem como deveria ser. Deixo assim. O tempo não exige explicações — muda o próprio tempo, como disse Heráclito: “ninguém entra duas vezes no mesmo rio”.

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Então, voa, liberdade. Pode me deixar só. Não tenhas medo de seguir em frente. Voa o mais alto que puderes. O infinito é o amigo mais próximo. O horizonte observa, de longe, o sol que partiu — como em Clarice Lispector, quando “a liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome. “

Talvez seja isso. A poesia não explica, não argumenta, não quer ter razão. Não importa o que dizem os que precisam dizer. Ouve o silêncio: ele nada quer dizer. E é nesse nada que tudo se move. As palavras inquietam sentimentos na solidão de existir — como diria Rilke, “a verdadeira pátria do homem é a infância”, ou talvez o silêncio onde ela repousa.

Portas entreabertas acolhem dores. Nos muros, frases de protesto. E ao entardecer, a melodia suave do vento. Num canto qualquer — talvez um sonho — tenta esquecer a realidade, escondendo-se no vazio. Na mente, apenas lembranças: vestígios de um instante presente na ausência de um olhar. Como em Proust, o tempo perdido é também reencontrado no sabor de uma memória.

Mas o mundo não para. Transforma o agora em passado num simples piscar de olhos. Consertar o que quebrou? Em vão. O tempo não se refaz. As águas correm para o mar — como disse Salomão: “Tudo corre para o mar, e o mar nunca se enche.“ (Eclesiastes 1:7)

Talvez alguém explique o inexplicável — esse paradoxo que é o próprio complexo humano. Mesmo que hajam respostas, sempre restarão perguntas em silêncio. E as novas perguntas não cabem em velhas respostas. Não se explica o acaso. Não deciframos o enigma do tempo — como em Camus: o absurdo não está no mundo, mas na tentativa de explicá-lo.

Tudo se esvai na perplexidade do absurdo. Asas não bastam — a liberdade não existe. Não há sonhos além do horizonte, nem arco-íris depois da tempestade. O sentimento apagou o sol no silêncio de um instante. Imagino o inimaginável: a solidão sendo ainda mais solitária — como Kafka, que dizia que “a solidão é o lugar dos conflitos do espírito”.

O sonho não quer sonhar. A noite parece eternidade. Mas os olhos insistem em ver, e as mãos acariciam a face das manhãs. A dor atravessa a alma e segue pelas curvas da verdade, sob os olhos do caos. A mente, aturdida, busca repouso na eternidade — como em Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena.“

Não, não vá. Fique mais um pouco. Delicie-se com as doces lembranças dos dias por vir. Ainda há voz — mesmo que apenas um murmúrio. Ainda há paz — ainda que distante. As mãos buscam as estrelas, mas o céu se afasta. A indignidade impede o toque. Não diga que não há mais tempo. Não me deixes só na escuridão. Em êxtase, desfaço-me em silêncio. Embriago-me num cálice de desejo e me perco mata adentro. Não posso ver, não consigo sair — sou transeunte dessas estranhas veredas. Não é metáfora, tampouco parábola: é a realidade crua da saga humana. Como no Gólgota de nossas angústias, cada um carrega sua cruz.

Talvez existam outros caminhos. Mas há flores mortas e palavras vazias. Ainda assim, o sol aquece, a chuva floresce os jardins, e um Deus solidário habita em cada um — como dizia Rubem Alves: “Deus não está nas respostas, mas nas perguntas.“

Pela fresta da janela, uma réstia de sol — um convite à vida, que pulsa incessante. De repente, o transcendente desfigura-se diante de mim e ilumina o paraíso. Volto a mim mesmo, refaço os momentos na eternidade de um instante, na loucura de um sonho interminável. Vejo a vida repousando à sombra da existência. Regada por porções de felicidade e goles de solidão.

Sinto o tempo soprar suas narinas, esvoaçar seus cabelos brancos em brisas de qualquer estação. Os instantes balbuciam, distantes dos momentos. O silêncio, esquecido de si, fere o imaginável com desejos insanos que atravessam o ser.

Há sujeira nos quintais e resquícios de ilusão sob os olhos do nada. Os instantes se perdem. As verdades são lançadas ao caos. A dor, suavemente, pede piedade — como no lamento de Jó: “Por que se dá luz ao miserável, e vida aos amargurados de ânimo?”  (Jó 3:23)

Sentimentos inquietos — sempre os mesmos, mas ainda querendo ser mais. A palavra que acendia paixões agora queima no vazio da existência. O lado, o lodo, o traço, o pedaço, o estilhaço. As veias, o sangue, as tentações diárias. Vagueiam entre momentos — o tempo de um silêncio. Um pouco de ilusão para sustentar um dia inteiro. Assim, tece-se a vida com a linha do horizonte. E se pinta, em segredo, a face do prazer escondido.

Escura é a noite. Longos são os dias. Como passos seguidos, milhas a caminhar, algum lugar a alcançar. Outros sonhos, o sol sobre a chuva, molhando o dia e germinando a noite. Noites frias, dias escuros. E o lado avesso, o tropeço, o rastejar à sombra da existência. A vida e toda a sua complexidade na completude do todo e na profundidade do ser.

Luiz Carlos de Proença – Conselheiro Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Capão Bonito SP – Autor do livro: O sol nas margens da noite

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