A má qualidade da formação médica no Brasil tem travado a descentralização do cuidado no SUS. Em vez de médicos preparados para resolver os problemas da população nos postos de saúde —a principal porta de entrada das pessoas—, o sistema lida com profissionais que, mal formados, apenas repassam a demanda para especialistas. O prejuízo é de todos.
“O que estamos recebendo são despachantes, não médicos”, disparou Mauro Guimarães Junqueira, secretário-executivo do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), durante o Fórum Descentralização do Cuidado – Novas Abordagens e Desafios para Reescrever a Assistência à Saúde, em Brasília. “A formação em saúde no nosso país deixa muito a desejar”, completou.
Muitos médicos recém-formados chegam às UBSs (unidades básicas de saúde) sem preparo para atuar como médicos de família e comunidade, função central na lógica do SUS. Motivados pela necessidade de renda e sem acesso à residência médica, esses profissionais pouco resolvem na ponta.
“Tem médico que encaminha um paciente para o endocrinologista só para prescrever insulina”, criticou Junqueira. Isso significa mais custo para o sistema, mais desgaste para o paciente, que precisa faltar ao trabalho de novo e esperar mais tempo por uma consulta com um especialista e ter a sua demanda atendida.

Imagem: Marcelo Camargo/Agência BrasiL
O problema estrutural se agrava com a falta de vagas em programas de residência e a baixa atratividade financeira das bolsas. “O sistema não estimula a formação contínua. O profissional sai da faculdade endividado, quer ganhar dinheiro rápido, e a UBS vira o primeiro emprego, mas ele não está preparado para isso”, afirmou.
Para Tânia Mara Coelho, presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e secretária de saúde do Ceará, a raiz do problema é ainda mais profunda. “Saúde não se muda sem educação. Esse é o pilar básico para transformar o cuidado no Brasil”, afirmou. Ela defende também o empoderamento da população como parte do processo: “As pessoas precisam saber o que cobrar e como cobrar”.
A descentralização do cuidado propõe que o atendimento ocorra no lugar mais adequado à complexidade do caso, de preferência, próximo à casa do paciente. Unidades básicas, ambulatórios e até o domicílio são preferíveis aos hospitais, que deveriam atender apenas os casos mais graves. A proposta melhora o acesso, desafoga serviços de emergência e promove um cuidado mais humanizado e eficiente. Mas, sem profissionais capacitados para atuar com autonomia na atenção primária, essa lógica se desmonta.
“Sem gente preparada para cuidar, não adianta reorganizar a rede. A descentralização precisa andar de mãos dadas com a formação e a valorização do trabalho em equipe”, disse José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz. Para ele, descentralizar o cuidado é também “uma resposta cultural às transformações contemporâneas da saúde coletiva, como o envelhecimento da população e o aumento das doenças crônicas”.
O que já está sendo feito
Apesar dos entraves, há experiências que apontam caminhos. No Brasil, iniciativas em estados como São Paulo e Minas Gerais, e em cidades como o Recife têm apostado na regionalização, digitalização da saúde e formação em serviço para tentar fortalecer a atenção primária
São Paulo, por exemplo, criou o programa “Pabinho”, que aumentou significativamente os repasses do estado aos municípios em dinheiro para atenção básica e atrelou os recursos a indicadores de desempenho. Em dois anos, a cobertura vacinal contra pólio e tríplice viral subiu mais de 10 pontos percentuais.
Já Minas Gerais investe em teleconsultorias (de médico para médico) e no fortalecimento da atenção primária para tratar até doenças raras —descentralizando inclusive o acompanhamento desses casos.
No Recife, a digitalização das UBSs e o uso de teleconsultorias já conseguiram retirar mais da metade dos pacientes das filas de espera por especialistas.
Fora do país, os dados também reforçam a eficácia da descentralização. O Reino Unido teve redução de 12% nas admissões hospitalares em 2022 em comparação com 2019 — que representa 800 mil internações a menos—, além de queda de 21% em admissões eletivas e de 9% nas emergenciais. Em Singapura, o programa MIC@Home, que leva o cuidado hospitalar para a casa dos pacientes, poupou 7.000 dias de leito até meados de 2023 e aumentou em 40% as teleconsultas.
Já na Holanda, a iniciativa Better@Home gerou uma economia anual de 2 milhões de euros e aumentou o acesso ao cuidado remoto em 20%. Na Bélgica, um projeto-piloto para pacientes com insuficiência cardíaca reduziu as readmissões em 15% e diminuiu o tempo médio de deslocamento em regiões rurais de 45 minutos para 15 minutos. Estes resultados estão em um relatório apresentado em 1º de julho pela consultoria Frontier View com apoio da Roche.
Mas, como alerta Flaviano Ventorim, vice-presidente da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos, não se trata apenas de reformar estruturas físicas: é preciso acompanhar a evolução tecnológica e de dados. “A gestão da informação será um fator decisivo. Estamos entrando em uma era de decisões rápidas e precisas, e quem não souber lidar com isso vai ficar para trás.”
O Brasil tem tecnologia, conhecimento acumulado e boas experiências locais. Mas, se quiser descentralizar de verdade, precisa começar pela base: uma formação médica que priorize a saúde coletiva, o cuidado próximo e o compromisso com o território. (Bárbara Paludeti – Do UOL, em Brasília)
A repórter viajou a convite da Roche.