Ressoa em nós, a cada amanhecer, um convite à renovação. Como se cruzássemos uma outra margem de nós mesmos — um rio que ora corre calmo, ora se agita em turbulência. Como no “rio de Heráclito”, somos levados a reconhecer que jamais nos banhamos duas vezes na mesma água. E nessa travessia íntima, buscamos o que há em nós, muitas vezes adormecido no fundo de um coração endurecido pelo tempo.
A Páscoa nos chama a esse mergulho: um tempo de nos alimentarmos da esperança, da fé, da empatia — valores que Paulo descreve como permanentes, sendo o amor o maior deles (1 Coríntios 13:13). É tempo de acordarmos os sonhos que repousam no silêncio. De sentirmos, mesmo entre as dores do mundo, um amor profundo que eleva e humaniza — como no gesto de Jesus ao lavar os pés dos discípulos, um amor que se faz serviço (João 13).
Páscoa é vestir-se de si mesmo, despir-se das máscaras — como em “Hamlet”, quando Shakespeare fala da aparência e do ser — e encontrar, no âmago da alma, o brilho da própria essência. Solidários e compassivos, seguimos por caminhos estreitos, entre flores e espinhos, procurando o jardim não apenas da existência, mas da vivência — esse lugar onde florescem pequenos milagres que nos compõem.
Há uma nova forma de ver o mundo quando nos deixamos tocar por essa sensibilidade. Uma nova maneira de enfrentar os desafios, com ternura nos gestos e leveza nos dias — como propunha Rubem Alves ao dizer que “ternura é o outro nome da inteligência”. E mesmo quando cansados, encontramos um abraço entre a flor e o jardim.
Porque a vida, ainda que envolta em noite escura, amanhece em versos que clareiam o dia — e “a manhã vem”, como anunciava Drummond.
O tempo, com suas dores e silêncios, também nos oferece recomeço, perdão, amor.
A cruz, com suas feridas, fala da passagem da vida, do avesso da pele, da entrega. Um caminho onde o divino pulsa naquilo que é mais humano: a bondade, a partilha, o amor que se oferece sem exigir nada — como em São Francisco, que pedia para ser instrumento da paz. A cruz é símbolo de um novo tempo — e sempre há tempo para recomeçar.
Mas em meio a tanto sofrimento, qual o sentido da Páscoa quando nos vemos tão distantes de nós mesmos? O lucro de poucos, o sofrimento de muitos. A dor atravessa o coração da humanidade, que sangra sob o peso da brutalidade do poder. O humano se perde no próprio poder, e o poder se afasta do que é verdadeiramente humano — como alertava Hannah Arendt ao falar da banalidade do mal.
Discursos de ódio, preconceitos, intolerâncias, guerras. O Cristo é crucificado de novo, todos os dias, na fome que esvazia corpos, na miséria que desnutre esperanças, no pão que falta, nas mãos que se fecham em desprezo e indiferença — mãos que já não sabem mais abençoar, como dizia Lya Luft.
Como celebrar a vida nova quando o mundo grita por lucro e dominação? Talvez amar seja, neste tempo, um ato revolucionário — como escreveu bell hooks: “o amor é um ato de vontade”. Porque o amor é o mais genuíno dos sentimentos. E a cruz, longe de ser apenas dor, é também símbolo de amor.
Amar é entender a condição humana — como propõe Emmanuel Lévinas, quando vê o rosto do outro como morada da ética. É perceber que, no fundo de tudo, a lógica da vida é o amor. Foi por amor — só por amor — que a cruz se fez fardo e acolheu o peso de toda a humanidade.
E a morte? A morte diz que a vida venceu. E que o amor, em sua forma mais pura, se fez poesia. Como quem diz: “No fim, será o amor — sempre o amor — a última palavra” (José Tolentino Mendonça).
Luiz Carlos de Proença – Conselheiro Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Capão Bonito SP – Autor do livro: O sol nas margens da noite